Sua canonização como uma reivindicação oficial da Igreja a ele e a muitas outras vítimas que promovem a justiça.
Me parece muito importante que o Papa Francisco reconheça oficialmente, perante o mundo, a santidade do arcebispo mártir, testemunhando que sua vida foi “imitação exemplar de Cristo e é digna de admiração dos fiéis”. Essa reivindicação também deve ser uma oportunidade para dignificar tantas pessoas que, como ele, em qualquer lugar do mundo, deram suas vidas promovendo a justiça.
Este reconhecimento eclesial é necessário no seu caso, porque, infelizmente, como afirma o próprio Papa, antes e depois de seu martírio Romero “foi difamado, caluniado e seu nome foi manchado até mesmo por seus irmãos no sacerdócio e ao episcopado”.
Estas calúnias fizeram com que o Vaticano, através da Congregação para os Bispos, enviasse em duas ocasiões (1978 e 1979) visitadores apostólicos para revisar o comportamento de dom Romero, como arcebispo de San Salvador. O Papa nunca lhe pediu formalmente para se retratar do que ele fazia ou dizia, rejeitou o pedido para removê-lo, mas lhe nomeou um bispo auxiliar com plena autoridade e não questionou ou investigou os bispos que o acusaram. O grande mérito do questionado foi que, apesar de tudo isso, permaneceu unido ao Papa e fiel ao seu lema episcopal “Sentir com a Igreja”.
As mesmas calúnias conseguiram, depois do martírio de dom Romero, congelar no Vaticano seu processo de beatificação, até chegar ao pontificado de Jorge Bergoglio.
Sua canonização como motivação para os bispos e sacerdotes serem autênticos Pastores, Profetas e Promotores do Reino de Deus.
O Papa Francisco, na carta de beatificação do Bispo Mártir, nos dá motivos para promover este triplo P como parte da devoção a São Romero, caracterizando-o como:
Pastor de acordo com o coração de Cristo: Dom Romero merece essa qualificação não só porque ele deu a vida por suas ovelhas, mas porque se entregou plenamente para conhecê-las até cheirar a ovelhas. Ele foi o primeiro Arcebispo a visitar todas as aldeias, mesmo as mais remotas e pequenas de sua Arquidiocese. Celebrava suas celebrações de padroeiros, convivendo com seus habitantes. Ele amava as suas ovelhas e as suas ovelhas sentiam-se amadas, ouvidas, compreendidas, protegidas, guiadas pelo seu Pastor. Prova disso foram as centenas de cartas que recebia semanalmente, nas quais contavam suas tristezas, preocupações, aspirações, consultando sobre suas dúvidas. Cartas que dom Romero insistiu em responder de maneira personalizada. Para este fim, ele confiou a duas freiras para sublinhar os aspectos mais importantes de cada uma delas e ampliar o breve comentário que ele mesmo escreveu na margem.
Evangelizador e pai dos pobres: não há dúvida de que dom Romero conquistou a consciência e o coração do povo salvadorenho através de sua pregação. Suas homilias dominicais, transmitidas pela Radio del Arzobispado (YSAX), foram o programa de rádio de maior audiência em El Salvador. Seu impacto decisivo foi devido, em parte, porque ele era um excelente orador, mas acima de tudo porque ele sabia como encarnar a Palavra no aqui e agora de seu tempo e comunicá-la em uma linguagem popular. Suas homilias dominicais consistiam em três partes: a explicação das leituras, o relatório sobre a sua atividade pastoral semanal e julgamento profético sobre os principais acontecimentos da semana, à luz da doutrina social da Igreja. Cada uma dessas partes preparava de forma responsável: para a primeira lia vários comentários de exegetas e teólogos sobre os textos bíblicos, meditada para descobrir como eles poderiam ser uma Boa Nova no presente; para a segunda, recolhia as moções experimentadas ou os resultados obtidos nas principais atividades pastorais que tivera; para a terceira, dom Romero ouvia atentamente as observações – nem sempre coincidentes – de um grupo diversificado, sobre graves violações de direitos humanos, rigorosamente verificados pela equipe de Tutela Legal do Arcebispado, e os fatos de maior relevância que ocorreram durante a semana. Mais tarde, sozinho e em oração, ele formulava sua própria opinião, a partir das vítimas, mas com uma atitude misericordiosa para com os vitimizadores.
Para esta última parte, dom Romero realmente foi “a voz dos que não tinham voz”, ou a única voz que naquela época que podia denunciar o que estava acontecendo e anunciar algum motivo de esperança.
Testemunha heroica do Reino de Deus, Reino de justiça, fraternidade e paz: fala-se muito da transformação progressiva que dom Romero teve após o assassinato do padre jesuíta Rutilio Grande. Do meu ponto de vista, isso se deveu à maneira como ele concebeu e testemunhou o Reino de Deus. Ele parou de contemplar isso abstratamente no céu para procurar instaura-lo concretamente na terra. Deixou de ser um mero espectador da realidade social para ser protagonista dela “de e com” os empobrecidos.
Esta historicização do Reino a promoveu o arcebispo mártir não só com a sua pregação profética, também o fez solicitando ao presidente dos Estados Unidos para parar o apoio militar ao governo de El Salvador, mediando conflitos trabalhistas, sociais e políticos, fazendo esforços para libertar os reféns, promovendo reconciliação nacional, dando assistência humanitária às pessoas necessitadas.
Sua devoção como inspiração para o seguimento de Jesus
Papa Francisco, em sua Exortação Apostólica sobre o chamado à Santidade no Mundo Atual (Gaudete et Exsultate), fala “dos santos da porta ao lado” aqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus
Se considerarmos o exemplo de dom Romero no momento de sua entrega, total e definitiva, muito provavelmente nos parecerá um modelo de santidade inatingível; mas se contemplarmos isso no processo gradual de sua gestação como uma testemunha do Reino de Deus, podemos facilmente nos sentir convidados a aprender muito com isso. Nós vamos encontrar uma pessoa que tem limitações, sensível às necessidades dos outros, psicológica e fisiologicamente frágil, tímida, indecisa, com medo, sempre em busca da vontade divina, com uma teologia e piedade, como qualquer um de nós, simples mais bem tradicional. Mesmo antes de se tornar arcebispo, ele era um pastor distante de seu clero, pouco apreciado por seus sacerdotes.
O que Romero nos ensina é que ele se deixou ser levado, transformado, renovado por Deus; Ele colocou sua confiança n’Ele; escolheu seguir a Jesus dando o melhor de si mesmo, desinstalando-se, encarnando a proximidade com os últimos, a pobreza, a entrega amorosa incondicional do Nazareno; ele se esforçou para construir, com Ele, esse reino de amor, justiça e paz para todos; aprendeu a superar-se, junto com seu clero e seu povo, para poder enfrentar os desafios, cada vez mais maiores, que a crescente crise política salvadorenha estava criando. Tudo isso possibilitou que a fortaleza e a misericórdia divina se manifestaram nele, apesar de suas limitações pessoais.
Por tudo isso, o Papa Francisco em sua carta no dia da beatificação conclui:
“Aqueles que tem a dom Romero como um amigo na fé que o invocam como protetor e intercessor, quem admira sua figura, encontrem nele força e coragem para construir o Reino de Deus, para comprometer-se com uma ordem social mais justa e digna”.
O texto é do jesuíta Rafael Moreno, publicada por Intercambio e reproduzida por CPAL Social, 20-09-2018.
Fonte: Cebs do Brasil