Quatro décadas de políticas habitacionais esgotaram-se, ao tornarem nossas metrópoles ainda mais desiguais e desumanas. Mas um novo caminho começa a se esboçar.
O artigo é de Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, autora de Guerra dos lugares: A colonização da terra e da moradia na era das finanças, publicado por edição 12 da revista Piseagrama e reproduzido por Outras Palavras, em 14 de outubro de 10 de 2018.
No final dos anos de 1970, quando arquitetos e urbanistas da minha geração começaram a se envolver com o tema das políticas urbanas, a situação das cidades brasileiras era de precariedade e pobreza, sobretudo em suas extensas periferias em formação. Desprovidas de água, luz, esgoto, pavimentação e calçadas, não eram poucas as casas com chão de barro e paredes de pau-a-pique, papel ou lona.
Apesar de aquelas situações serem agora menos recorrentes, dois fatores me levam a imaginar que a crise urbana talvez seja hoje ainda mais grave do que naquele momento. O primeiro fator é o retorno, a partir do início desta década, de situações de extrema precariedade que nos pareciam excepcionais e que há muito não se viam. Quando encontramos, nas franjas metropolitanas de São Paulo, casas feitas de papelão ou famílias cozinhando com lenha em plena cidade, percebemos que as conquistas sociais estão longe de se consolidar no país.
O segundo fator talvez seja o mais importante. Naquele amargo final do Regime Militar, experimentávamos a precariedade, mas instalava-se também a esperança. Havia uma enorme ilusión, como se diz em espanhol, palavra estrangeira que mistura esperança com ilusão. Um belo sentido que aponta para o fato de que as utopias talvez não sejam mesmo realizáveis, mas carregam o poder de alimentar lutas capazes de transformar a realidade.
De fato, naquele momento retomava-se a luta pela Reforma Urbana, expressão cunhada nos anos de 1950 no âmbito do debate das reformas de base do período João Goulart. Uma pauta completamente subsumida nos anos de chumbo que retorna revigorada no final dos anos de 1970 calcada, sobretudo, no encontro produtivo entre moradores das vilas e favelas (subjetividade política que começava a se constituir no Brasil) e setores intelectuais e profissionais, especialmente constituídos por arquitetos, engenheiros e advogados. O encontro desses dois grupos conformou o Movimento pela Reforma Urbana.
De um lado, estava a agenda tecnocrática do planejamento, de matriz europeia – colonialista, como dizemos hoje –, assumindo como futuro desejável para o país os exemplos europeus bem-sucedidos do estado de bem-estar social. Discutíamos a ideia de estado de bem-estar social urbano buscando o controle territorial do processo de crescimento das cidades, no intuito de garantir, para todos, adequada inserção urbana e políticas sociais capazes de produzir equipamentos e serviços necessários tais como mobilidade, atenção à saúde e à educação, além de uma política social de moradia produzida em massa.
Do outro lado, estavam os moradores das vilas e favelas, suas demandas e necessidades e sua forma de pensar seus direitos. A matriz do planejamento se encontrou, no território, com essa outra subjetividade política, formada em um universo católico, cujo corpus sociopolítico havia sido formado a partir da Teologia da Libertação, das pastorais e das comunidades eclesiais de base. As ideias de redistribuição e justiça social estavam muito presentes no catolicismo popular das periferias e isto conectou as duas agendas. A ideia do “direito a ter direitos” é fruto desse encontro. Desse modo foi possível construir uma agenda para a Reforma Urbana que respondia às demandas dos trabalhadores que viviam precariamente sem água, luz, escola e transporte apostando em um planejamento urbano e em uma regulação do processo de produção do espaço capaz de viabilizar tudo isto. Essa agenda foi pouco a pouco penetrando as lutas urbanas. O planejamento includente passou a ser um dentre os instrumentos de luta, utilizado concomitantemente com a mobilização, a auto-organização e a pressão direta.
Naquele período de vibração por uma sociedade democrática, testemunhávamos a reorganização do mundo associativo e político do país com a formação de sindicatos, associações e partidos políticos. A esperança que havia nessa grande mobilização social marca a grande diferença com relação à crise que vivemos hoje. O que podemos notar atualmente é que aquilo que foi possível construir a partir de toda aquela movimentação que mobilizou milhares de pessoas por décadas – e sem dúvida acumulou vitórias importantes, especialmente no campo jurídico e normativo – bateu numa espécie de teto, pondo em questionamento as estratégias e os instrumentos utilizados.
Um dos alvos das críticas do Movimento pela Reforma Urbana nos anos de 1980 eram os conjuntos habitacionais construídos durante o governo militar pelo Banco Nacional de Habitação, o BNH. Como os empreendimentos eram, via de regra, situados em periferias desqualificadas e desurbanizadas, especialmente quando se tratava de produção de moradias para a baixa renda, o resultado era a ênfase no espraiamento das cidades e na segregação espacial, valorizando terrenos nas franjas urbanas e gerando grande demanda por deslocamento.
Outra deficiência perceptível era o foco do programa. Majoritariamente voltado para as classes média e média baixa, ele nunca privilegiou as camadas mais pobres. Criticávamos, ainda, a péssima qualidade arquitetônica dos conjuntos habitacionais e sua incapacidade de absorver as múltiplas demandas dos futuros moradores e a dinâmica urbana desejada, uma vez que eram edificações exclusivamente residenciais. O saldo do programa poderia ser assim resumido: os mais pobres continuavam sem atendimento e a classe média baixa era jogada para as bordas da cidade em bairros monofuncionais, com edifícios de arquitetura pobre, pouca infraestrutura e distantes das oportunidades de trabalho.
Entretanto, os limites de nossa atuação ficaram evidentes em décadas mais recentes, quando as mesmas críticas de décadas anteriores puderam ser aplicadas ao Minha Casa Minha Vida (MCMV), principal programa habitacional realizado pela coalizão que se constituiu sob a hegemonia do Partido dos Trabalhadores. O programa Minha Casa Minha Vida construiu mais de 4 milhões de unidades habitacionais em sete anos, mas produziu finalmente poucos efeitos na redução das necessidades de moradia. Pesquisas mostram que o déficit habitacional cresceu no mesmo período: passamos de 5,8 milhões para 6,2 milhões de unidades, segundo a Fundação João Pinheiro.
Sendo assim, o MCMV contribuiu para ampliar a desigualdade espacial. O programa aqueceu o mercado e fez aumentar o preço dos aluguéis, ao mesmo tempo que jogou as pessoas em conjuntos homogêneos situados em lugares desurbanizados – guetos para pobres –, reproduzindo um modelo de expansão periférica e segregação clássico no Brasil.
Alguns argumentaram que tais problemas seriam de responsabilidade das prefeituras, que falharam ao não aplicar os princípios do Estatuto das Cidades. É preciso entender, no entanto, que a produção periférica é estrutural no modelo do Minha Casa Minha Vida. Como as construtoras recebiam sempre os mesmos valores pelos imóveis, independentemente do preço do terreno, é evidente que, para aumentar a rentabilidade, os terrenos utilizados seriam os mais baratos, localizados nas bordas das cidades. Outra estratégia empregada pelas construtoras para aumento da rentabilidade foi a repetição, de forma que vemos conjuntos habitacionais em Manaus muito parecidos com outros localizados na Serra Gaúcha – apesar das enormes diferenças climáticas e culturais.
Somadas à grande disponibilidade de crédito no mercado no período, as centenas de bilhões que o governo injetou no Minha Casa Minha Vida provocaram uma explosão de preços no mercado imobiliário, já que as incorporadoras e construtoras entraram numa dinâmica intensiva de aquisição de terrenos. Várias pesquisas já mostraram que a curva de aumento de preços de terrenos e de aluguéis no período de 2009 a 2014 fica muito acima do aumento do salário e do rendimento. Como costuma acontecer por aqui, uma boa parte da dinâmica econômica se transfere para o ganho rentista de proprietários de terras e imóveis. Por essa razão, o ônus excessivo com aluguel tornou-se o maior componente de crescimento do déficit habitacional.
Talvez não tenhamos enxergado o quanto falhamos em romper com paradigmas básicos da política urbana e habitacional no Brasil. Um deles é a histórica captura da política habitacional pela ideia de que ela se reduziria à produção e à venda de casas financiadas. Nessa lógica, o locus de elaboração da política habitacional tem sido os bancos – hoje a Caixa Econômica Federal –, o que significa a submissão da política às lógicas e necessidades de rentabilidade de um fundo financeiro, o FGTS.
A política habitacional no Brasil foi sempre disputada por dois grandes grupos econômicos: o setor da indústria da construção civil, representado hoje pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção, e o setor do crédito financeiro imobiliário, ou seja, o setor financeiro ligado às sociedades de poupança, crédito e empréstimo, através da Associação Brasileira de Crédito Imobiliário e Poupança – ABECIP, e da Federação Brasileira de Bancos – Febraban, com a particularidade de um banco público como epicentro de tudo isto.
Entretanto, por definição, o modelo de crédito hipotecário de compra da casa própria exclui quem mais precisa. Mesmo quando há subsídio quase integral, como foi o caso do Minha Casa Minha Vida Faixa 1, voltado para um público de baixa renda, os habitantes desses novíssimos bairros, retirados de seus antigos assentamentos precários, favelas ou vilas, não conseguem arcar com os custos do condomínio. A obsessão com o modelo da casa própria não nos permite enxergar outras possibilidades de políticas mais adequadas para essas pessoas, como o aluguel social ou as cooperativas.
Não custa lembrar que a política da casa própria enfatizada pelos governos militares, ao fazer de “cada trabalhador um proprietário”, como diziam seus ideólogos, tinha como objetivo, dentre outros, a despolitização da sociedade. Ao mesmo tempo, a proposta tem enorme adesão porque a experiência concreta de moradia dos mais pobres nas cidades é extremamente precária, tanto física como materialmente, e baseada na eterna situação de transitoriedade. Para quem vive nessas condições, a possibilidade de uma casa própria é o porto seguro, esperança de estabilidade. A casa própria, no entanto, não resolve o problema habitacional do Brasil, país de desigualdade gigantesca.
A existência de certo déficit habitacional leva automaticamente ao raciocínio de que precisamos construir certo número de casas, mas, se esta abordagem falha em resolver o problema, podemos concluir que o problema está mal formulado. Torna-se importante rever a noção de déficit habitacional, umbilicalmente ligada à ideia de que política habitacional se resume à construção de novas unidades.
A questão de fato é outra e diz respeito ao entendimento das necessidades habitacionais em jogo. Nessa abordagem, percebe-se rapidamente que os problemas de moradia são fundamentalmente caracterizados pela diversidade. Há situações de precariedade do imóvel, situações de precariedade do bairro e, às vezes, a combinação das duas. Há situações de coabitação involuntária, e mesmo de coabitação voluntária, com pessoas da mesma família compartilhando o espaço não apenas porque não têm casa, mas também porque não há creches para que as mães possam sair para trabalhar, de forma que avós e tias acabam cumprindo este papel.
Há também situações de ônus excessivo com o aluguel, quando o valor pago é impossível para a renda familiar e compromete a alimentação, o vestuário, o transporte, a educação. São situações bastante distintas que demandam políticas distintas. Mas a obsessão pela construção da casa própria individual, com crédito hipotecário, faz com que se ofereça sistematicamente um produto que, em vez de ser destinado a quem mais precisa, suga demasiados recursos e, mais ainda, toda a energia da política pública, sem resolver o problema habitacional.
O Brasil encontra-se hoje numa situação de emergência habitacional. Durante os anos de boom econômico e especialmente nos anos de grande disponibilidade de crédito para moradia, tivemos o aumento nos preços dos terrenos e nos valores de aluguéis muito acima do aumento da renda e dos salários que ocorreu no mesmo período. Ainda no círculo virtuoso de políticas de redistribuição de renda do governo Lula, a defasagem entre o crescimento do salário e o crescimento do preço da moradia fez aumentar o número das ocupações urbanas no país.
Ocupações de prédios vazios e subutilizados nos centros urbanos, ocupações de galpões em antigas áreas industriais, ocupações de terrenos ociosos nas novas franjas periféricas das cidades. Assistimos praticamente à constituição de um novo mercado informal, incorporando, por um lado, o léxico e a forma de organização dos movimentos sociais de luta pela moradia, que sempre promoveram ocupações como estratégia de luta, mas, por outro, consolidando-se como única opção de moradia para aqueles que não encontram absolutamente nenhuma alternativa de aluguel ou acesso à compra de uma casa.
A partir de 2014, a situação se agravou tremendamente com a crise econômica, a interrupção da trajetória crescente do emprego formal e o aumento do desemprego, seguidos depois pelo golpe parlamentar que trocou o comando da coalizão para governar o país. Os programas habitacionais, por mais problemáticos que fossem, foram reduzidos de vez, sem que outras políticas fossem implementadas em seu lugar. A austeridade não reduziu a crise econômica, ao contrário, assistimos ao aumento da pobreza e da precariedade. O edifício que desabou recentemente no centro de São Paulo, depois de um incêndio, é triste expressão da explosão de ocupações por falta de moradia que marcou os últimos anos no Brasil.
Nenhum dos países que outrora enfrentaram a necessidade de moradia em massa, como Inglaterra, França, Rússia, Holanda ou Estados Unidos, o fez através de políticas de casa própria. A tônica sempre se baseou em programas de locação social por meio de várias modalidades. Nos países socialistas, ou da social democracia, foram criados estoques públicos de casas para serem alugadas com valores subsidiados e proporcionais às rendas das pessoas. Em outros lugares foram criados estoques cooperativos de casas, alugadas de forma estável e permanente para seus membros.
Os modelos de locação sempre tiveram grande efetividade porque não há apropriação individual do investimento público, não há necessidade de que as pessoas se endividem para pagar por um bem caríssimo e não há aquecimento do mercado pelo aumento da demanda privada por terra. Se as centenas de bilhões de reais que o governo federal utilizou para construção do MCMV tivessem sido investidas em terrenos públicos em regiões bem localizadas, formando um estoque público de casas, teríamos começado a atacar o problema habitacional de fato. Não podemos deixar, é claro, de apontar também os problemas que envolvem o gerenciamento público de tais estoques: a manutenção permanente e seus custos e a enorme dificuldade da gestão estatal em função de todos os mecanismos de controle de gastos públicos incapazes de fazer a administração cotidiana ágil e eficiente.
No contexto brasileiro atual, parte importante daquilo que se chama déficit poderia ser resolvida com melhorias – em edifícios e nos próprios assentamentos. A urbanização de favelas, a regularização urbanística, ambiental, patrimonial e administrativa dos assentamentos informais, os programas de melhorias de moradia por assistência técnica ou a distribuição da infraestrutura pública em bairros já existentes, dentre outros, são tão ou mais importantes que os programas de construção de novas unidades.
Diversas experiências mostram que áreas urbanizadas informalmente podem ser reformadas de maneira colaborativa com os moradores para se chegar ao resultado de moradias de qualidade. Isso implica imaginar um leque de alternativas que são acionadas de maneira complementar. Em vez de uma alternativa “modelo único”, centralizada e homogênea para o Brasil inteiro, é necessário imaginar um conjunto mais aderente com as realidades locais, que inclua a reabilitação de edifícios vazios e subutilizados nos centros urbanos e sua destinação à moradia popular.
Dentro desse leque de alternativas pode caber também a regulação do aluguel, que vem sendo praticada em cidades como Nova Iorque e Berlim, entre outras. Nesses lugares, há um controle público dos patamares do aluguel visando a evitar as enormes especulações que ocorrem em momentos de euforia econômica. Regulação não significa congelamento de aluguéis, como ocorreu com a Lei do Inquilinato brasileira nos anos de 1940, mas um percentual de proximidade com os índices que medem a inflação. Como a moradia é um item estruturante da vida, a variação abrupta dos preços dos aluguéis, como vimos ocorrer no início da década, tem grave efeito negativo no planejamento e na estabilidade das famílias.
Sendo assim, o que me parece mais relevante do que fazer casas seria produzir cidade, utilizando para isto recursos públicos, ou seja, produzir áreas urbanizadas, de boa qualidade e com bons equipamentos, ex ante – da maneira que a classe média faz para si mesma. Nessas áreas urbanizadas, a construção de moradias poderia ser responsabilidade de cooperativas e autoconstrutores, com assistência técnica pública.
A política urbana deveria passar por uma reforma radical. É necessário construir outra política urbana e habitacional dentro do Estado, para além do que existe hoje, majoritariamente dentro da Caixa Econômica Federal. Nessa direção começamos a elaborar a ideia, ainda que de maneira incipiente, de uma espécie de SUS: um Sistema Único de Desenvolvimento Urbano que pudesse ter repasses, fundo a fundo, nas três esferas da federação, constituindo fundos de desenvolvimento urbano cujas prioridades seriam estabelecidas por conselhos com ampla participação e baseadas em exercícios pactuados de planejamento. Enquanto não estiverem atrelados a fundos com capacidade de execução, os planos habitacionais, de mobilidade, saneamento ou regulação urbana, dentre tantos outros, são meros exercícios retóricos. A ideia de um Sistema Único permitiria a cada município ou estado realizar projetos autônomos de política habitacional, mais aderentes às realidades socioterritoriais de cada lugar.
É evidente que uma mudança dessa natureza exigiria a reestruturação do próprio pacto federativo. É preciso ter em mente que a maior parte dos municípios é uma verdadeira ficção de governança, de governo territorial, de gestão: são estruturas absolutamente famélicas, sem nenhum aparato técnico e muito menos de controle social. Chamamos de “municípios” e definimos as mesmas competências para unidades territoriais, demográficas e de gestão completamente distintas e isto nos ajuda a entender a mediação política errática que constituiu as transferências orçamentárias na área do desenvolvimento urbano.
Não se implementam políticas urbanas de longo prazo simplesmente porque está escrito na lei. As leis – já aprendemos muito bem com a atual conjuntura de ativismo judiciário – são mais um front de disputa. Só a partir de uma estrutura que vá além da legislação, com políticas de financiamento, regulação pública e incentivo às prefeituras, poderíamos chegar ao que almejamos quando inserimos os artigos referentes à Reforma Urbana na Constituição de 1988: “A garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.
Foto de capa: Luis Carlos – Pinterest
Fonte: Cebs do Brasil