Em resumo, pode-se dizer que o Fundamentalismo tem três dimensões que, por natureza, se interpenetram. A primeira se radica no interior das pessoas e podemos designar como dimensão psíquica ou antropológica. A segunda, que já se manifesta coletivamente, e toma corpo em grupos sociais defensores de um determinado conjunto de valores, tidos como “fundamentais”, perenes e irrenunciáveis, é a dimensão cultural. Finalmente, se esses grupos ou segmentos da sociedade têm capacidade de impor suas convicções e pontos de vista mediante mecanismos e instrumentos de poder (de classe ou através do próprio aparelho do Estado), então estamos na dimensão política do fenômeno ou movimento que vai no sentido contrário ao da aceitação da diversidade, do respeito às diferenças e à pluralidade de ideias, de atitudes e de comportamentos, ou seja, no sentido contrário ao que se chama de “convivência democrática”.
Lideranças do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI-Nordeste) sentiram a necessidade de ter mais informações que ajudem a compreender melhor o fenômeno conhecido por Fundamentalismo que assola particularmente as Igrejas cristãs, além de fatias significativas da sociedade atual. Conhecendo melhor as raízes, as características e o significado do fenômeno, quem sabe, será mais fácil refletir sobre estratégias adequadas a serem adotadas na Leitura Popular da Bíblia.
Tive em mãos dois bons textos sobre o assunto. Um, obra coletiva organizada por Zwinglio M. DIAS. “Os Vários Rostos do Fundamentalismo”, resultado de um encontro e debate no “Fórum Ecumênico Brasil”, publicação de 2009, pelo Centro de Estudos Bíblicos. O outro, de Roberley PANASIEWICZ, “Fundamentalismo Religioso: História e Presença no Cristianismo”, artigo que me chegou às mãos através de delicado gesto de meu ex-aluno e amigo Dr. Gilbraz Aragão, hoje eminente professor de Teologia e Ciências da Religião na Universidade Católica de Pernambuco.
Pode-se dizer, de maneira geral, que o Fundamentalismo é marcado por uma tendência a voltar aos princípios fundamentais de uma tradição tida por “sagrada” ou intocável e reinterpretada em termos literais e absolutos. As raízes dessa tendência se radica no íntimo da pessoa e aflora em momentos de crise e de incerteza. Pode-se caracterizá-lo como “o delírio dos amedrontados” (Zwinglio Mota Dias). O grande teólogo Reinhold Niebuhr afirmou: “(…) os homens insistem com maior relevância sobre suas certezas quando sua segurança a respeito delas foi abalada. A ortodoxia exacerbada é um método para ocultar a dúvida”. Manifesta-se mediante comportamentos intransigentes, de intolerância, de autoritarismo, chegando até à imposição violenta do próprio ponto de vista.
Poder-se-ia dizer, inicialmente, que o Fundamentalismo tem suas raízes profundas nas pessoas, em suas incertezas, seus medos e inseguranças psíquicas que provocam a reação de autoafirmação, de intolerância e de agressividade. Mas além dessa dimensão psíquica básica e profunda, quando se torna uma atitude e um comportamento coletivos, o Fundamentalismo se manifesta como movimento cultural, ou seja, um ou mais grupos sociais se manifestam coletivamente a exigir o retorno ao que consideram “valores sagrados e inquestionáveis” ou “sagrados fundamentos” da cultura que deve reger a convivência social. O estágio mais perigoso, porém, o mais grave e ameaçador se dá quando a tendência fundamentalista, de pessoas e grupos sociais, adquire poder político e não apenas proclama suas convicções culturais (de valores que lhe são caros), mas tem concretamente a capacidade e os meios para ameaçar, coagir, perseguir e impor, até com violência, suas convicções.
Esse poder político se materializa, por obra da classe mais rica e conservadora, ao pôr seu prestígio, dinheiro e instituições e mecanismos de ameaça e violência a serviço do fortalecimento dessa cultura reacionária; além disso, o próprio Estado, em determinadas circunstâncias, como instrumento da classe dominante, tem a capacidade de impor aquela cultura, mediante leis e ou mecanismos de repressão, como o autoritarismo, podendo mesmo chegar à ditadura desmascarada, por exemplo, sob o pretexto de ter nas mãos o direito ao “monopólio legítimo da força”, ou proclamando agir em nome ou em defesa da maioria ou da “porção sadia” da sociedade.
Em resumo, pode-se dizer que o Fundamentalismo tem três dimensões que, por natureza, se interpenetram. A primeira se radica no interior das pessoas e podemos designar como dimensão psíquica ou antropológica. A segunda, que já se manifesta coletivamente, e toma corpo em grupos sociais defensores de um determinado conjunto de valores, tidos como “fundamentais”, perenes e irrenunciáveis, é a dimensão cultural. Finalmente, se esses grupos ou segmentos da sociedade têm capacidade de impor suas convicções e pontos de vista mediante mecanismos e instrumentos de poder (de classe ou através do próprio aparelho do Estado), então estamos na dimensão política do fenômeno ou movimento que vai no sentido contrário ao da aceitação da diversidade, do respeito às diferenças e à pluralidade de ideias, de atitudes e de comportamentos, ou seja, no sentido contrário ao que se chama de “convivência democrática”.
Na época contemporânea, o chamado “movimento fundamentalista’ se originou nos Estados Unidos da América do Norte entre 1910 e 1925. É claro que, além de ‘movimento’, essa ‘tendência’ tende a ser mais ampla e atinge desde o Cristianismo até o Judaísmo, o Islamismo, o Hinduísmo e o Sikhismo etc. De fato, porém, sua formulação histórica original como “movimento” se deu no Cristianismo ocidental e protestante. Um elemento básico é a afirmação da existência de um texto sagrado e a determinação dos modos de relação do crente com o mesmo. Na verdade, trata-se de uma reação à Modernidade, com seu naturalismo científico, racionalismo moral e democracia política. Deve-se ver a origem dessa reação no Puritanismo inglês que vem dos tempos da Reforma.
A plataforma básica do movimento se acha em quatro afirmações:
Cinco verdades foram consideradas “the fundamentals”: 1) a inspiração e consequente infalibilidade e inerrância das Escrituras; 2) a divindade de Cristo; 3) o nascimento virginal de Cristo e seus milagres; 4) o sacrifício propiciatório de Cristo; 5) a ressurreição de Cristo, compreendida de maneira literal e física, e seu retorno. Naturalmente, por isso, rejeita-se qualquer contribuição da Crítica Bíblica (o método chamado de Histórico-Crítico), assim como a própria Exegese bíblica, o exercício da Hermenêutica e da reflexão teológica, acusada de “liberal”
Quatro elementos fundamentais são subjacentes a todas as listas de “fundamentos”: 1, o princípio da inerrância; 2. O princípio da a-historicidade; 3. O princípio da superioridade, pois a lei divina está acima de tudo; 4. O primado do mito da fundação da identidade que funda a missão dos crentes em torno de um sistema (de crenças) capaz de reproduzir na “cidade terrena” o modelo de sociedade proposto no livro sagrado. .
O “movimento” tomou forma nos Estados Unidos no fim do século XIX, em torno de 1890, em oposição a chamada Teologia Liberal. É nesse clima do século XIX que nascem os Mórmons, os Adventistas e as Testemunhas de Jeová, reflexo da crise, com ênfase no literalismo bíblico, na intransigência quanto à religião, na expectativa da volta de Cristo para breve – sintomas da situação de insegurança e incerteza de milhões de norte-americanos pobres imigrantes e explorados… Como explicar essa onda que desde então tem sido avassaladora? Baste pensar no que se dá hoje em dia nas chamadas igrejas pentecostais e mais ainda nas pós-pentecostais, e em setores expressivos do próprio Protestantismo histórico e do Catolicismo Romano.
As transformações sociais e culturais e, consequentemente, psíquicas da Modernidade têm levado a uma profunda crise de valores. O racionalismo desacreditava os “mitos” e os “rituais”, portanto, dimensões essenciais das religiões, e punha no centro a norma da RAZÃO. Particularmente a teoria da evolução de Charles Darwin, contestada até hoje nos USA, parecia levar a Bíblia de águas abaixo. A crise e a incerteza estimulavam o sentimento apocalíptico, daí a grande discussão em torno da volta de Cristo no final dos tempos e seus sinais, tanto sob a ótica do premilenarismo, como do pós-milenarismo. Deu-se a fundação de vários cursos de Teologia para difundir o Fundamentalismo e fortalecer o Protestantismo conservador, inclusive com fortes financiamentos de empresários e magnatas do petróleo com interesse na leitura literal da Bíblia.
Em 1910 já se estava vivendo na crise social e política que levou à Primeira Guerra Mundial (1914) e à “Grande Depressão” dos anos 30, devido ao rápido desenvolvimento da indústria e da vida urbana. De um lado, grande efervescência cultural (criatividade artística e científica e tendências progressistas nas igrejas); doutro lado, os setores conservadores não podiam suportar uma religião que não fosse portadora de uma doutrina infalível e invariável, e que pudesse conviver com quem confessasse outra fé, sem monopólio da verdade.
Entre 1910 e 1915, publicou-se uma série de fascículos intitulados “The Fundamentals”: enfatizavam a doutrina da Trindade; refutavam a Crítica Bíblica; defendiam a verdade literal dos evangelhos. Realizavam-se congressos e reuniões e fundou-se a “Associação Mundial dos Fundamentalistas Cristãos” (1919). Eram opositores da Ciência e da Liberdade, e promoviam a criação de igrejas excludentes e uma ética de separatismo em relação a outros grupos cristãos e à sociedade, em geral marcados pelas tendências “modernas”. Houve pressão para implantar a oração nas escolas públicas e a leitura da Bíblia, assim como para financiamentos públicos a escolas confessionais e a outras atividades religiosas. A convicção era que a Bíblia, por ser Palavra de Deus, devia ser imposta ao conjunto da sociedade como base da ordem social.
Entre 1909 e 1925, período em que se deram a Revolução Russa e a Primeira Guerra Mundial, cresceram as expectativas de clima apocalíptico com as tentativas de identificar o Anticristo e olhar os USA com a missão de comandar a batalha final até o triunfo do Bem e da Liberdade. Assim, o Fundamentalismo evoluía para a defesa da “América Cristã” e a expansão da influência política e cultural do gigante do Norte.
A partir de 1940, surge uma tendência mais “moderada” no seio do “movimento fundamentalista”. Pretendia superar o reacionarismo antimoderno, mas era igualmente conservadora e ideologicamente vinculada à ideia da missão salvadora dos EEUU no mundo (o famoso “destino manifesto”). Surgiram então grandes evangelistas como Billy Graham, com a utilização de potentes meios de comunicação de massa e cruzadas mundiais, com suporte de várias associações e organizações nos Estados Unidos.
Diz-nos Panasiewicz que, “nas últimas décadas, o movimento fundamentalista tem articulado religião e política como uma forma de fazer valer os valores cristãos a partir de sua concepção teológica. É dessa maneira que é possível compreender a sua forma mais atual: o neofundamentalismo”.
O neofundamentalismo apresenta-se não só como movimento de tipo religioso mas, também, como verdadeiro sujeito político cuja intenção é reagir contra a presumível perda de valores da sociedade americana e contra a degeneração da democracia, inquinada pela tolerância laxista da imoralidade, pela fragilização do papel tradicional da família e por tantas „heresias‟ civis que se foram difundindo (os direitos dos gays, os casais homossexuais e, sobretudo, a legislação do aborto).17
E continua afirmando que “a atenção dos neofundamentalistas está voltada para o reparo moral da sociedade através da ação política. Ao utilizar a linguagem da comunicação moderna, em especial da mass media, apresenta-se como capaz de superar as fronteiras confessionais e, por meio de uma abordagem conservadora, instigar a sociedade a recuperar o que consideram valores morais do passado. A televisão e as novas tecnologias da informação passam a ser espaços privilegiados para, em nome de Deus, tornar públicas as críticas sociais e fazer apologia de valores morais conservadores. Isso se realiza por meio de um compromisso político de renovação moral dos comportamentos sociais. A renovação religiosa da sociedade, a partir dos valores bíblicos, é condição necessária para a sociedade não perder sua identidade profunda.
Tendo compreendido a origem histórica do fundamentalismo no interior do protestantismo, cabe agora nova pergunta: como o fundamentalismo se implantou no catolicismo?”
Nesta última parte, reproduzo, “ipsis litteris” (literalmente) as palavras de Panasiewicz, assim como a bibliografia que oferece em seu artigo.
No universo católico, a atitude fundamentalista é conhecida como atitude integrista ou integralista (ou ainda, como „movimento de restauração‟). Pode-se dizer que a prática integrista ocorreu em duas fases: ad extra e ad intra. A fase ad extra foi o momento do final do século XIX e primeira metade do século XX, sobretudo no início do século, quando a igreja católica se posiciona contrária à modernidade cultural e ao liberalismo. A fase ad intra, segunda metade do século XX, precisamente após o Concílio Vaticano II (1962-1965), quando a igreja católica absorve certos valores modernos e terá uma reação de vários de seus representantes oficiais provocando inclusive um cisma no seu interior (é o caso de dom Lefèbvre).
Compreendendo melhor as etapas, pode-se dizer que a fase ad extra, encontra-se na própria origem do termo integrismo: surge “na Espanha no final do século XIX para designar uma corrente política que pretendia impregnar com catolicismo intransigente toda a vida da nação […]”18 Integral, pois rejeita o liberalismo e sua tentativa de reduzir o religioso ao espaço privado e, com esta finalidade, acaba por ter uma atitude intransigente.
Em 1864 o papa Pio IX publica um documento, Syllabus, contendo um conjunto de sentenças contra os principais erros do mundo moderno (Sílabo significa coletânea ou conjunto de sentenças). Era um documento que dava aos católicos “uma guia e norma segura para precaver-se das doutrinas errôneas e perniciosas que o liberalismo moderno pretendia infiltrar na sociedade, como princípios novos, reclamados pelo progresso da ciência e da civilização.”19 Em 1907 o papa Pio X publica a encíclica Pascendi dominici gregis, apresentando uma solene condenação do modernismo e apontando ser ele a causa de todas as heresias. Nela o papa faz apelo à “Infalibilidade do Romano Pontífice”, definido em 1870 no Concílio Vaticano I. “Pascendi favoreceu o surgimento e desenvolvimento do integrismo católico que pôs em obra um verdadeiro serviço secreto de espionagem, para detectar e denunciar modernistas.”20 Essa encíclica propicia a aprovação dos conservadores e a crítica dos teólogos mais abertos ao mundo moderno. Neste horizonte de crítica às inovações proporcionadas pela modernidade é que surge o Ensino Religioso nas escolas públicas e a fundação de escolas católicas como forma de manter a integridade católica e consequente derrocada da laicização da sociedade.
A fase ad intra, tem sua origem na década de 60. Em 1962 começa o Concílio Vaticano II, concílio que pode ser visto como um divisor de águas, pois abrirá a igreja católica à modernidade diferenciando-se da postura até então assumida. Para além das querelas internas da igreja católica com relação à modernidade cultural, o Concílio Vaticano II apresenta a igreja como “Povo de Deus”, igreja consciente, dinâmica e que vive em uma história, portanto, deve aprender e ensinar com ela. Esse concílio produziu 16 documentos procurando articular a vida interna da igreja (sobretudo as inovações teológicas e a reforma litúrgica) e sua relação com o mundo externo (cultura moderna, tradições religiosas …)
Alguns representantes oficiais da igreja ou mesmo movimentos já constituídos não aprovaram os resultados do Concílio e provocaram reações. É o caso do bispo Marcel Lefèbvre, que chegou a exercer o cargo de arcebispo de Dakar, no Senegal. Ele condena o Concílio Vaticano II por ser o causador da crise interna da igreja católica e propõe reter a totalidade íntegra da identidade tridentina. (O Concílio de Trento foi entre 1545-1563). Ele acaba por provocar um cisma na igreja católica e funda em 1971 a „Fraternidade Sacerdotal São Pio X‟, com sede na Suíça. No Brasil, o bispo de Campos, Rio de Janeiro, Dom Antônio de Castro Mayer, e o bispo de Diamantina, Minas Gerais, Dom Sigaud, seguem esta mesma trilha aberta por Lefèbvre. Dois movimentos que também irão reagir contra as inovações desse concílio, embora sem sair da igreja, são a „Opus Dei‟, de origem espanhola, e a „Comunione e Liberazione‟, de origem italiana. “Em termos de política eclesiástica, essas correntes seguem uma orientação papista e extremamente tradicionalista e devem a sua forma atual em grande parte à luta contra as inovações promovidas pelo Segundo Concílio Vaticano.”21 Nos Estados Unidos surge, em 1965, o movimento Catholic Traditionalist Movement (Movimento Católico Tradicionalista), fundado pelo padre De Pauw, e em 1973 o Orthodox Roman Catholic Movement (Movimento Ortodoxo Católico Romano), fundado pelo padre Francis Fenton. Ambos críticos às inovações do Concílio, porém o segundo possuía caráter radical. “Francis Fenton acusa os bispos favoráveis ao Concílio Vaticano II de serem „comunistas e maçônicos‟.”22 Por isso queria restaurar a integridade perdida da igreja.
Para Leonardo Boff, esse movimento integrista católico pode ser dividido em fundamentalismo doutrinário e fundamentalismo ético-moral.23 O fundamentalismo doutrinário sustenta que a única igreja de Cristo é a igreja católica, as outras igrejas possuem apenas elementos eclesiais; o catolicismo é a única religião verdadeira e as outras tradições religiosas devem se converter a esta. Alguns outros elementos que ajudam a caracterizar esse fundamentalismo é a concepção da centralização patriarcal do poder sagrado apenas nas mãos do clero, o autoritarismo do magistério papal, a discriminação das mulheres com referência ao sacerdócio e aos cargos de direção na comunidade eclesial, pelo simples fato de serem mulheres, a infantilização dos leigos, por não serem portadores de nenhum poder sacramental.
O fundamentalismo ético-moral se caracteriza por orientar de forma fechada e conservadora a vida das pessoas, sobretudo de seus fiéis. São contrários ao uso de contraceptivos, de preservativos, da fecundação artificial, da interrupção da gravidez, julgam como pecaminosa a masturbação e o homossexualismo, proíbem as segundas núpcias após um divórcio, o diagnóstico pré-natal e a eutanásia.
Concluindo com Claude Geffré, a diferença entre o fundamentalismo centrado nas Escrituras (tanto protestante quanto uma ala católica) e o integrismo é que, “no caso do fundamentalismo escriturístico, haverá uma certa sacralização da letra da Escritura como testemunha fiel da Palavra de Deus; no caso do integralismo doutrinal haverá uma quase sacralização da tradição dogmática da Igreja e uma recusa do que o Vaticano II chamava hierarquia das verdades[…]24
Jesus foi membro do povo judeu, povo que se considerava especialmente de Deus pela aliança estabelecida por meio de Moisés, o grande libertador da servidão no Egito. Em meio a Seu povo assumiu a tarefa de Profeta que denunciava desvios e infidelidades à Aliança e anunciava a presença do Reino de Deus mediante a conversão, a mudança de vida, sobretudo o serviço recíproco, a partilha e a acolhida de pobres, enfermos, mulheres e pessoas vítimas de marginalização e exclusão…
Após Sua condenação e morte, Seus discípulos e discípulas estavam certos de que ressuscitara dos mortos e, assim, tinham sido cumpridas as promessas de Deus anunciadas pelas profecias. Por isso valia a pena empenhar a própria vida para levar adiante Sua missão de proclamar um novo modo de viver. Assim, Jesus se tornou o “fundamento” de um novo projeto de existência, cujo eixo fundante era a vida em comunidade, aberta sem discriminações, para além de todas as barreiras.
Não se tratava de pensar que Jesus fosse o “fundador” de um novo povo, à margem ou em ruptura com o povo da Aliança. A “assembleia de Deus” era o povo de Israel, só que agora essa aliança se alargava a todas as nações, sem exclusões. Assim, pensar em fundar uma nova “assembleia” teria sido para Jesus romper com o povo de Deus, que era o seu próprio povo. Ora, a palavra “assembleia” é a mesma que vai dar “igreja” em nossas línguas. Jesus não “fundou” algo novo, liderou um movimento profético em vista de nova compreensão do Reino de Deus, aberto a todos os povos. Por consequência, é claro que muito menos se tratava de uma nova “religião”. Jesus não morreu “cristão”, morreu judeu, membro da religião de Seu povo. Nas primeiras comunidades não havia uniformidade, mas considerável diversidade de correntes e estilos, até mesmo diferentes compreensões quanto ao “seguimento de Jesus”. Dessa maneira, quando falamos de “Igreja”, não devemos imaginar uma “instituição”, fundada por Jesus, mas um movimento de uma rede de comunidades que, aos poucos, se espalhava pelo Judaísmo e pelo mundo gentio, rede na qual o Apóstolo São Paulo teve um papel preponderante. Na verdade, Jesus permanecia como o “fundamento” dessa nova proposta de vida. A organização das comunidades foi surgindo com seus discípulos e discípulas, como o vemos claramente em textos como os Atos dos Apóstolos e as Epístolas. É absolutamente fora de propósito querer atribuir a Jesus diretamente a organização da Igreja e de suas estruturas e instituições. Como dizia um famoso teólogo francês, condenado pelo Vaticano, chamado Loisy, “Jesus anunciou o Reino e o que surgiu foi a Igreja”. Não se trata de dizer que a Igreja é algo ilegítimo e indesejável, mas reconhecer a verdade da história. Enquanto “missão”, a Igreja é continuadora da missão de Jesus, é n’Ele que se acha seu “fundamento”, mas sua organização histórica e suas formas institucionais foram surgindo progressivamente a partir dos Apóstolos e discípulos e discípulas de Jesus, como instrumento da missão. A ideologia eclesiástica, porém, insiste até hoje em afirmar que Jesus é historicamente “fundador” das instituições eclesiásticas, como se houvesse, de maneira direta e imediata, uma linha de continuidade entre a pessoa de Jesus e seu ministério e o que veio a chamar-se “Igreja cristã”. Dessa forma, dá-se caráter definitivo e sagrado àquilo que, na verdade, é sempre provisório e histórico. O que é, de fato, uma atitude “fundamentalista”.
Já no século Iº, desde a segunda geração cristã, percebe-se um retrocesso em relação às propostas proféticas e inovadoras de Jesus. Começa-se a retroceder e a retomar costumes e instituições do Judaísmo e do mundo gentio que Jesus havia tido a coragem de confrontar, como, por exemplo, a situação da mulher e a situação dos escravos. Começa a insinuar-se o patriarcalismo, condenado por Jesus e por São Paulo, e o livro de Apocalipse sugere que há membros das comunidades que já se acomodam às estruturas e aos costumes do Império, por medo e covardia diante da perseguição e de condenação.
A partir do século IIº, motivadas pela perspectiva de dialogar com a sociedade greco-romana, e tendo em conta a derrocada do Judaísmo frente a Roma, as comunidades vão assumindo progressivamente formas e estruturas religiosas de procedência judaica e gentia e, assim, vão se tornando “religião da sociedade”. A influência do Gnosticismo vai acentuando o espiritualismo, a moral do Estoicismo, marcada por um certo elitismo, vai sendo vista com bons olhos como guia do comportamento cristão e o pensamento vai se aproximando fortemente do Neoplatonismo, com seu dualismo entre espírito e matéria. Por causa de discussões doutrinárias (o Canon das Escrituras, por exemplo), por questões de administração e para manter a unidade das comunidades, foi-se fortalecendo a figura do “bispo monárquico” que governa a Igreja, antes só supervisor ou “epíscopos”. Na verdade, o Novo Testamento oferece suficientes sinais de que três modelos de Igreja seriam legítimos: episcopal (em torno de figura proeminente de um Apóstolo ou seu substituto); presbiteral, com a liderança em mãos de um conselho de presbíteros, modelo que vem do Judaísmo; e congregacional que parece ter sido o caso em Igrejas que se reclamavam do patrocínio do Apóstolo João. Há traços fortes de “congregacionalismo” em comunidades de origem paulina, como Corinto, p. ex.
Nos séculos IIIº e IVº, a Igreja vai sendo aceita como nova base de apoio ao Império, o aparelho de repressão mediante as perseguições vai sendo desmontado até que, de religião da sociedade, adquire o status de “religião do Estado”, sob o imperador Constantino (313 d.C). Que tremenda mudança, entre o ministério profético de Jesus e dos Apóstolos e a Igreja como parte do aparelho estatal do Império Romano.! E tal mudança atribuída à proteção divina! Estribada no poder do Estado adquire ela mesma poder e pode sem escrúpulos perseguir seus próprios filhos e filhas quando são considerados hereges pelo setor dominante. Meu professor de Cristologia nos dizia que até hoje não se sabe dizer se Nestório foi mesmo nestoriano…
Com a queda do Império por ocasião das invasões dos povos do norte da Europa, os “chamados bárbaros” (não “civilizados”), a Igreja restava como a grande liderança social, moral e política e sobre ela se funda o edifício do Medievo a saber, a “Cristandade”. Por dez séculos Igreja e sociedade europeia se confundem sobre as bases do sistema do Feudalismo, civilização eminentemente rural que vinha suceder a organização urbana do Império Romano. É a época do poder absoluto do papado, em íntima aliança com os senhores feudais, príncipes e imperadores. É justamente nesses dez séculos que se acham as bases do Catolicismo que conhecemos e de seu sistema autoritário e até cruel. Lembremo-nos das Cruzadas contra os árabes muçulmanos, para a retomada da Terra Santa… na verdade, para abrir as portas do Oriente ao comércio europeu. Chegou a haver Cruzadas contra os próprios irmãos na Europa a pretexto de serrem “hereges”. Lembremo-nos da Inquisição e de suas terríveis torturas, que chegava a sentenciar as pessoas a morrerem queimadas vivas nas malditas fogueiras. Processos secretos e arbitrários sem nenhum respeito pelos direitos das pessoas. O papado era, na verdade, a suprema legitimação ideológica do sistema da Cristandade, com sua Cúria, seu sistema de espionagem e seu poder de decretar a morte. No século XI, com a reforma promovida pelo Papa Gregório VII, o papado, para expandir seu poder absoluto, promove a não interferência dos príncipes e senhores feudais nos “negócios” eclesiásticos, sem que os dignitários eclesiásticos renunciassem a sua própria interferência nos negócios seculares, sim, porque o Papa, bispos e gente do clero continuavam a ser senhores feudais. Essa etapa é lembrada como a de luta contra as “investiduras” (o poder dos senhores temporais na indicação a cargos eclesiásticos) e a “simonia” (aquisição de cargos eclesiásticos mediante diversas maneiras de “compra”).
A partir daí, no século XI, se fortalece o movimento popular dos pobres, incluindo pessoas e grupos de camponeses explorados, grandes figuras espirituais de monges e eremitas e mulheres místicas e monjas e também mulheres do povo, facilmente acusadas de bruxaria e condenadas à morte. Na verdade, essas figuras eram lideranças dos movimentos populares daquele tempo, líderes espirituais e políticos. No que concerne às mulheres, muitas vezes se tratava de pessoas capazes de manusear ervas e elementos da Natureza em tratamento de doenças, isto já seria suficiente para suscitar suspeita de bruxaria e artes ligadas ao diabo… O poder impunha a sua verdade autoritariamente, arbitrariamente e com violência, sem tolerância. Particularmente na Idade Média aparece com clareza aquilo que hoje podemos chamar de raízes do Fundamentalismo católico.
A partir desse amplo contexto é que se compreende a Reforma Protestante, promovida e experimentada como libertação do poder absoluto do papado, e trazendo de volta grandes princípios do Catolicismo das origens, que estavam esquecidos. Infelizmente, a Reforma teve dificuldade de responder satisfatoriamente as demandas do movimento popular, como se vê no triste episódio da matança dos camponeses, aconselhada por Lutero aos príncipes alemães. Na verdade, a Reforma representava o novo sujeito histórico, a burguesia, com sua consciência de “indivíduo”, para além do “corporativismo” feudal.
A reação católica, com a chamada Contra-Reforma, obra codificada no Concílio de Trento, restaurou o clima de autoritarismo doutrinal e, aliado a esse, político, na medida em que conseguia. Lembremo-nos das “Concordatas” e pactos com as chamadas nações cristãs, que só começaram a cair em desprestígio a partir da Revolução Francesa, algumas vigente até nossa época. O Concílio Vaticano I é o ápice dessa época e começo de um novo tempo, com a unificação da Itália e a perda dos Estados Pontifícios e o papa autodeclarando-se “prisioneiro voluntário” no Vaticano. Para compensar a “desmoralização” do papa enquanto príncipe temporal, fortaleceu-se seu poder espiritual absoluto sobre o conjunto da Igreja. O papa Gregório XVI já havia proibido a instalação do trem e da energia elétrica em seu território,.com o temor de que assim se abria a via para a entrada das “ideias modernas”. Quando lideranças do Vaticano I tentaram mostrar ao papa Pio IX que não tinha base na Tradição a doutrina da infalibilidade papal, ele teria respondido: “A Igreja sou eu, a Tradição sou eu”. E o papa foi declarado infalível e tendo poder universal e imediato sobre cada fiel católico onde quer que se encontre… Como já vimos acima, publicou um famoso documento chamado “Syllabus” com um elenco das afirmações cujo teor era proibida aos católicos, por conter erros “modernos”. Sem falar do “Indice de Livros Proibidos” por conterem erros modernos. Pio X vai em seguida elencar quais os “erros modernos” a serem evitados, e chega mesmo a dizer que “estão proclamando por aí que todas as pessoas são iguais; ora, Deus foi quem criou a diferença, com uns acima e outros abaixo, para a completa harmonia do conjunto”. Mesmo Leão XIII ainda sugere a ideia de que a existência de pobres proporciona ajuda a que os ricos se salvem por obras de caridade… A Igreja estava em luta aberta contra o Modernismo, a saber, contra a Modernidade, reafirmava seu mundo medieval… só que definitivamente perdido.
O Concílio Vaticano II abrirá uma nova época de diálogo entre Igreja e Mundo, Fé e Sociedade. Em nosso continente afro-ameríndio tivemos as Conferências de Medellín e Puebla para promover a recepção do Concílio. Um tempo em que tivemos grandes figuras de bispos, intrépidos evangelistas e pastores defensores do povo frente às ditaduras que se espalhavam em nossos países. Padres, religiosos e religiosas, leigos e leigas saíram a campo para possibilitar o encontro da Igreja com a camada pobre da sociedade Vieram estes últimos quarenta anos, com mudanças profundas, institucionais e de atmosfera, na Igreja. A sociedade também tem sido remexida pela internacionalização do sistema do Capital e a revolução tecnológica das comunicações, sem falar no gravíssimo problema que atinge o meio-ambiente, com ameaças à própria vida na terra… As declarações da Conferência de Aparecida parecem não ser assumidas pelas lideranças eclesiais e, por isso mesmo, têm dificuldade de chegar à base do povo católico. Chega o Papa Francisco, com seu testemunho pessoal, com sua profecia, com o chamado à “Igreja em saída” e a proclamação de aliança com os movimentos populares (terra, casa e trabalho), assentada essa aliança sobre a convicção de que “a Igreja tem opção fundamental pelos pobres”. O clima da Igreja, porém, parece ser bem outro. Oxalá sua voz não seja a de mais um “profeta que clama no deserto”… nestas paragens sempre mais inóspitas, particularmente para quem é pobre na Igreja e na sociedade.
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Este artigo foi escrito por Dom Sebastião Armando Gameleira Soares, e publicado originalmente no blog do autor. Dom Sebastião Armando Gameleira Soares fez seus estudos secundários no Seminário Metropolitano de Maceió e estudos de Filosofia no Seminário de Olinda, Pernambuco. Obteve o bacharelado e o mestrado em Teologia na Universidade Gregoriana, de Roma, com dissertação sobre Santo Anselmo, Arcebispo de Cantuária. Obteve também o mestrado em Ciências Bíblicas, no Instituto Bíblico, de Roma, com dissertações sobre o Livro dos Salmos e o Livro de Isaías, e o mestrado em Filosofia na Universidade Lateranense, de Roma, com dissertação sobre a obra do filósofo brasileiro Henrique de Lima Vaz. Ainda em Roma, fez Especialização em Sociologia, na Universidade dos Estudos Sociais, com trabalho sobre a obra de Gilber to Freyre. É também bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Olinda. No Nordeste, por vários anos, foi professor do Instituto de Teologia do Recife-ITER, do qual foi também Diretor de Estudos. Foi assessor membro da equipe do Departamento de Pesquisa e Assessoria-DEPA para formação teológica. Foi assessor da CNBB e da CRB do Nordeste II. É membro do Centro de Estudos Bíblicos-CEBI, do qual foi diretor nacional e coordenador do Programa de Formação.
Contribuição de Marco Aurélio
Fonte: Cebs do Brasil